Alô alô planeta terra chamando. Cabei de traduzir um texto lindo das Mujeres Creando, na raça com o dicionariozim na mão e a ajuda de amigos. Deve de tá bom... Boa leitura povo!!!
Coloquemos o corpo
Por Maria Galindo
Nossas
pinturas, ou mais bonito nossas “graffitadas”, não necessitam de uma interpretação
sofisticada ou rebuscada, não estamos apresentando esse livro para abrir a pesada
cortina de um estudo acadêmico sobre nossa linguagem graffiteira. Aqueles que
quiseram interpretar desse ângulo se perderam até murcharem, pobres... E não
foram poucos!
Apresentamos
a vocês esse livro porque nos foram pedidas centenas e milhares de vezes um
livro sobre as “graffitadas”, e não é por pretensão ou arrogância... Acreditamos
que se as paredes falassem, elas também pediriam graffitis. As paredes dos
bancos onde se suga o trabalho do povo, as paredes das salas dos burocratas
onde policiais vigiam para que ninguém se sente para chorar, que nenhuma chola cansada se sente em sua porta, que
nenhum engraxate decida abrir seu negócio na porta de alguma embaixada... Se as
paredes falassem pediriam graffitis para ter boca e braços para falar e
abraçar.
As pessoas,
mulheres e homens de todas as idades, de terno ou de jaqueta, velhas ou jovens
de todos os pontos de vista nos pediram esse livro porque agora não só querem
ter as “graffitadas” nas ruas de suas cidades, mas também em suas casas, em
suas cabeceiras e sobre a mesa de jantar ou entre os livros e recortes de
receitas de cozinha ou docerias, ou quem sabe escondido e clandestino junto das
coisas proibidas e amadas. Sabemos que esse livro, mesmo em casa, não vai
ocupar um lugar qualquer, porque os graffitis depois de anos nas paredes,
depois de terem sido apagados centenas de vezes por três ou quatro diferentes
ministérios de governo, porque apesar do sol, do frio, e toda a crueldade que
também caminha nas ruas de nossas cidades, nossas “graffitadas” depois de
tantos anos seguem cheias de frescor. Lemos suas palavras centenas de vezes e
não perdem sua música, sua força, seu sentido, não se desgastam com o passar do
tempo, seguem suando sobre as paredes, abraçando e acompanhando as rebeldes e
até os rebeldes, seguem se instalando nos corações das desprevenidas e
desprevenidos, e chamando à desobediência, ao prazer, ao amor, à luta, a ser
parte de nossa vida cotidiana.
Somos grafiteiras, não
bombardeiras!!!
Graffitar é
para nós um método, uma forma ou uma estratégia de luta, como prefiram chamar
isso. Quando grafitamos estamos lutando, mas isso não significa que não seja
uma ação para rir e desfrutar também. É que o verbo “lutar” tem sido
historicamente sempre carregado de um sentido militar, um sentido militar que
nós detestamos. Para nós lutar se conjuga com amar, se conjuga com sentir e
criar e sem isso essa luta te destrói ao invés de te fazer crescer.
Bom,
voltemos a isso de lutar graffitando: na hora de graffitar é tão prazeroso
escrever: “De fazerte o jantar, de
fazerte a cama, me fugiu o desejo de fazerte amor”ou “Atrás de uma mulher feliz existe um machista abandonado”, quanto
“O condor passa, a ditadura segue.
Julgamento a Banzer”. É que nossas pinturas cabem em um leque não temático,
não hierarquizado, nem ordenado, mas cotidiano.
É como nossa
cotidianidade, onde ao mesmo tempo em que corrigimos as tarefas das crianças (wawas), que para elas são tão sérias e
para nós algo tão pequeno, vai ao mesmo tempo e sem nos separar da correção, doendo-nos
de que o ditador esteja no governo. Nos invadem os pensamentos sobre a reforma
educativa, que se vê que não funciona...
Mas bem, com
a mão esquerda buscamos a lista de compras, das coisas que nos faltam para pôr
na carteira, e recebemos a chamada para firmar o contrato e pensamos há quanto
tempo não fazemos amor e sentimos uma frieza logo interrompida pela menininha
ali, que precisa de um casaco vermelho para dançar de maçãzinha. Assim vamos construindo essas pinturas a
partir de nós e nosso cotidiano, que é político, que é concreto, que é o
dia-a-dia que compartilhamos com nossos entes queridos e também com seus
tormentos. O útero, o fundo da carteira, nossas tranças ou nossas lágrimas
podem ser os lugares de onde saem. E às vezes vemos as pinturas se retorcerem
de calor no azeite fervendo das panelas ou delicadamente envoltas nas fraldas
das crianças. A criatividade também
não deixa de fazer os seus truques, se esconde e sai lentamente nas pontas dos
pés para fora de seu canto quando nos vê contornar nossos sentimentos mais
profundos de dor ou de alegria.
Aprovar uma idéia para
pintar
A aprovação
geral do que vamos pintar é simples: eu digo e leio em teus olhos... você gosta
disso, te fascina!!! Não irmã, ainda falta, está confuso, porque não colocamos
esse toquezinho... Sim, assim está pronto... Como era? É um
jogo de intuições e sensibilidades, onde a razão pode sair e dar uma voltinha,
porque ninguém lhe perguntou nada. Também há "graffitadas” que recuperamos
do movimento feminista latino-americano e de algumas poetas amadas,
especialmente Alfonsina Storni, a argentina; Julieta Paredes, nossa
companheira; Sor Juana Inês de la Cruz, a mexicana; e Tecla Tofario,
venezuelana. Nós entendemos as pinturas como ação artística e por isso
reconhecemos a autoria só quando extraímos um verso escrito, porque sua força
incontrolável não é a individualidade, mas a coletividade pensante, atuante e
sonhadora. São as Mujeres Creando que vão mais além de cada uma de nós e que
envolve também a essas mulheres que desejamos convocar e seduzir.
Contudo, o graffiti ou pintura não é
uma frase pensada para ser escrita em um livro, é a frase escrita no muro. E
para nós o “onde” e o “quando” é resultado de uma resposta a um processo de
reflexão coletiva sobre o espaço, isto é,
é na rua e na cidade e sobre o espaço histórico político que está o “quando”
e o “porquê”.
É assim que as nossas pinturas
interagem diretamente com a população, porque as colocamos de propósito para
romper com a rotina política que gira em torno dos homens públicos secos de
imaginação e frequentemente de inteligência, homens tão carentes que só lhes
sobra o ego fálico e o afã de mandar. Fazemos as pinturas de propósito para
desordenar a ordem social piramidal e pesada, onde acima é o lugar dos impunes
e prepotentes e abaixo estamos nós. Rompemos esse equilíbrio piramidal não
deixando que recaiam sobre nossos homens, fazemos intencionalmente para romper o silêncio de nós mulheres,
fazemos intencionalmente para romper os “bons costumes” que deixaram reservado
para as mulheres o lugar da cozinha, as fidelidades incondicionais e as
resignações. Cada vez que você vê escrito: “Luta
ama a vitória”, pode imaginar nesse mesmo lugar duas mulheres abraçando-se,
beijando-se, fazendo empanaditas nesse
lugar, na rua e na luz do dia. Trazemos outros exemplos: na cidade de La Paz,
na rua 20 de Outubro, nas calçadas onde existem vários clubes noturnos onde
noite após noite oficinachos (homens de
escritório+fascista) compram seu “direito” entre aspas de humilhar as
mulheres, pintamos entre outras coisas: “Para
todos os sistemas de machos e fascistas a mulher é uma puta, morram os
sistemas, vivam as putas”. Pudemos comprovar que as mulheres trabalhadoras
desses clubes têm usado essas pinturas a seu favor e sabemos que ter na boca as
palavras para poder se defender é vital quando te fodem. As pinturas também
estão lá para isso. Outro exemplo interessante é o Clube Oruro na cidade de
Oruro, clube que condensa as normas sociais classistas e racistas a respeito da
sociedade orurenha em seus afãs hipócritas: bom, ali pintamos: “Tu me quer virgem, tu me quer santa, você me
tem farta”. Em Cochabamba temos observado como o atual prefeito que usa como
apelido político “el Bombóm”, havia tentado conquistar apoio do setor feminino,
apoio construído misturando confusos sentimentos de participação e machismo ao
mesmo tempo. Bom, para elas escrevemos em todas as partes e repetidamente: “Mulher, não se entregue ao “facho” fascista
de Bombóm, constrói sua própria visão”.
Temos tido cuidado
também de não cair em uma visão maniqueísta onde os homens enquanto homens são
os vilões do filme e as mulheres enquanto mulheres somos as boazinhas do assunto.
Assim fizemos alguns escritos alusivos a aquelas mulheres que se identificam
com o sistema e que adotam seus métodos machistas e hipócritas, pintando: “Cuidado, o patriarcado agora também se
disfarça de mulher sedenta de poder”.
Sabem, essa pintura
ocasionou o VII Encontro Feminista Latino-americano no Chile, uma reação de tal
apaziguamento por parte das mulheres, que o encontro inteiro não pôde seguir
adiante sem antes tomar posição ante a pintura e por tabela ante o poder e seus
representantes. Outro escrito dedicado a algumas candidatas que utilizam o
mesmo formato do homem público na hora de fazer política e se mostram como
supermulheres “decentes” pintamos: “Eu
era uma mulher decente e dona de casa, que barbaridade não estranho meu
passado, note que não vou sair candidata”.
Esses são só alguns exemplos para
aclarar como interatuamos com o espaço físico e com o espaço histórico de nossa
cotidianidade. O resultado disso é a pintura que dialoga da parede sempre com
um “tu” que a olha. Nossas pinturas se dirigem a um “tu” e, sobretudo a um tu
despojado de classe, de pertencimento institucional, despojado de hierarquia,
despojado de mando. Por isso jamais insultamos, não lançamos declarações, não
divulgamos receitas políticas, não somos complacentes. É por isso que as
tentativas de nos copiar, que não foram poucas, não obtiveram nenhum resultado.
Graffitar assim é uma coisa muito
séria. É uma ação onde inserimos nosso corpo na luta histórica para transformar
nossa sociedade. Não colocamos um corpo heroico, militarizado, colocamos um
corpo vulnerável, sensível, sensual, criativo, desarmado e não-violento.
Coletivo Mujeres Creando é
formado por ativistas urbanas, feministas e anarquistas, com bases nas
cidades de La Paz e Santa Cruz de la Sierra, Bolívia. Fundado em 1992, Mujeres
Creando é um movimento autônomo (constituído por prostitutas, poetas,
jornalistas, vendedoras de mercado, empregadas domésticas, artistas,
costureiras, professoras etc.) em luta contra o sexismo e o patriarcado
institucionalizado, tanto na Bolívia quanto no resto do mundo. Com essa
finalidade, as integrantes de Mujeres Creando atuam como guerrilheiras, abrindo
espaços de visibilidade e descobrindo outros com seus próprios corpos; na rua,
nos meios de comunicação e nos espaços da arte contemporânea internacional.
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