terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Alô alô planeta terra chamando. Cabei de traduzir um texto lindo das Mujeres Creando, na raça com o dicionariozim na mão e a ajuda de amigos. Deve de tá bom... Boa leitura povo!!!




Coloquemos o corpo 
Por Maria Galindo

            Nossas pinturas, ou mais bonito nossas “graffitadas”, não necessitam de uma interpretação sofisticada ou rebuscada, não estamos apresentando esse livro para abrir a pesada cortina de um estudo acadêmico sobre nossa linguagem graffiteira. Aqueles que quiseram interpretar desse ângulo se perderam até murcharem, pobres... E não foram poucos!
            Apresentamos a vocês esse livro porque nos foram pedidas centenas e milhares de vezes um livro sobre as “graffitadas”, e não é por pretensão ou arrogância... Acreditamos que se as paredes falassem, elas também pediriam graffitis. As paredes dos bancos onde se suga o trabalho do povo, as paredes das salas dos burocratas onde policiais vigiam para que ninguém se sente para chorar, que nenhuma chola cansada se sente em sua porta, que nenhum engraxate decida abrir seu negócio na porta de alguma embaixada... Se as paredes falassem pediriam graffitis para ter boca e braços para falar e abraçar.
            As pessoas, mulheres e homens de todas as idades, de terno ou de jaqueta, velhas ou jovens de todos os pontos de vista nos pediram esse livro porque agora não só querem ter as “graffitadas” nas ruas de suas cidades, mas também em suas casas, em suas cabeceiras e sobre a mesa de jantar ou entre os livros e recortes de receitas de cozinha ou docerias, ou quem sabe escondido e clandestino junto das coisas proibidas e amadas. Sabemos que esse livro, mesmo em casa, não vai ocupar um lugar qualquer, porque os graffitis depois de anos nas paredes, depois de terem sido apagados centenas de vezes por três ou quatro diferentes ministérios de governo, porque apesar do sol, do frio, e toda a crueldade que também caminha nas ruas de nossas cidades, nossas “graffitadas” depois de tantos anos seguem cheias de frescor. Lemos suas palavras centenas de vezes e não perdem sua música, sua força, seu sentido, não se desgastam com o passar do tempo, seguem suando sobre as paredes, abraçando e acompanhando as rebeldes e até os rebeldes, seguem se instalando nos corações das desprevenidas e desprevenidos, e chamando à desobediência, ao prazer, ao amor, à luta, a ser parte de nossa vida cotidiana.

Somos grafiteiras, não bombardeiras!!!

            Graffitar é para nós um método, uma forma ou uma estratégia de luta, como prefiram chamar isso. Quando grafitamos estamos lutando, mas isso não significa que não seja uma ação para rir e desfrutar também. É que o verbo “lutar” tem sido historicamente sempre carregado de um sentido militar, um sentido militar que nós detestamos. Para nós lutar se conjuga com amar, se conjuga com sentir e criar e sem isso essa luta te destrói ao invés de te fazer crescer.
            Bom, voltemos a isso de lutar graffitando: na hora de graffitar é tão prazeroso escrever: “De fazerte o jantar, de fazerte a cama, me fugiu o desejo de fazerte amor”ou “Atrás de uma mulher feliz existe um machista abandonado”, quanto “O condor passa, a ditadura segue. Julgamento a Banzer”. É que nossas pinturas cabem em um leque não temático, não hierarquizado, nem ordenado, mas cotidiano.
            É como nossa cotidianidade, onde ao mesmo tempo em que corrigimos as tarefas das crianças (wawas), que para elas são tão sérias e para nós algo tão pequeno, vai ao mesmo tempo e sem nos separar da correção, doendo-nos de que o ditador esteja no governo. Nos invadem os pensamentos sobre a reforma educativa, que se vê que não funciona...
            Mas bem, com a mão esquerda buscamos a lista de compras, das coisas que nos faltam para pôr na carteira, e recebemos a chamada para firmar o contrato e pensamos há quanto tempo não fazemos amor e sentimos uma frieza logo interrompida pela menininha ali, que precisa de um casaco vermelho para dançar de maçãzinha.  Assim vamos construindo essas pinturas a partir de nós e nosso cotidiano, que é político, que é concreto, que é o dia-a-dia que compartilhamos com nossos entes queridos e também com seus tormentos. O útero, o fundo da carteira, nossas tranças ou nossas lágrimas podem ser os lugares de onde saem. E às vezes vemos as pinturas se retorcerem de calor no azeite fervendo das panelas ou delicadamente envoltas nas fraldas das crianças. A criatividade também não deixa de fazer os seus truques, se esconde e sai lentamente nas pontas dos pés para fora de seu canto quando nos vê contornar nossos sentimentos mais profundos de dor ou de alegria.

Aprovar uma idéia para pintar

            A aprovação geral do que vamos pintar é simples: eu digo e leio em teus olhos... você gosta disso, te fascina!!! Não irmã, ainda falta, está confuso, porque não colocamos esse toquezinho... Sim, assim está pronto... Como era?  É um jogo de intuições e sensibilidades, onde a razão pode sair e dar uma voltinha, porque ninguém lhe perguntou nada. Também há "graffitadas” que recuperamos do movimento feminista latino-americano e de algumas poetas amadas, especialmente Alfonsina Storni, a argentina; Julieta Paredes, nossa companheira; Sor Juana Inês de la Cruz, a mexicana; e Tecla Tofario, venezuelana. Nós entendemos as pinturas como ação artística e por isso reconhecemos a autoria só quando extraímos um verso escrito, porque sua força incontrolável não é a individualidade, mas a coletividade pensante, atuante e sonhadora. São as Mujeres Creando que vão mais além de cada uma de nós e que envolve também a essas mulheres que desejamos convocar e seduzir.
            Contudo, o graffiti ou pintura não é uma frase pensada para ser escrita em um livro, é a frase escrita no muro. E para nós o “onde” e o “quando” é resultado de uma resposta a um processo de reflexão coletiva sobre o espaço, isto é,  é na rua e na cidade e sobre o espaço histórico político que está o “quando” e o “porquê”.
            É assim que as nossas pinturas interagem diretamente com a população, porque as colocamos de propósito para romper com a rotina política que gira em torno dos homens públicos secos de imaginação e frequentemente de inteligência, homens tão carentes que só lhes sobra o ego fálico e o afã de mandar. Fazemos as pinturas de propósito para desordenar a ordem social piramidal e pesada, onde acima é o lugar dos impunes e prepotentes e abaixo estamos nós. Rompemos esse equilíbrio piramidal não deixando que recaiam sobre nossos homens, fazemos intencionalmente  para romper o silêncio de nós mulheres, fazemos intencionalmente para romper os “bons costumes” que deixaram reservado para as mulheres o lugar da cozinha, as fidelidades incondicionais e as resignações. Cada vez que você vê escrito: “Luta ama a vitória”, pode imaginar nesse mesmo lugar duas mulheres abraçando-se, beijando-se, fazendo empanaditas nesse lugar, na rua e na luz do dia. Trazemos outros exemplos: na cidade de La Paz, na rua 20 de Outubro, nas calçadas onde existem vários clubes noturnos onde noite após noite oficinachos (homens de escritório+fascista) compram seu “direito” entre aspas de humilhar as mulheres, pintamos entre outras coisas: “Para todos os sistemas de machos e fascistas a mulher é uma puta, morram os sistemas, vivam as putas”. Pudemos comprovar que as mulheres trabalhadoras desses clubes têm usado essas pinturas a seu favor e sabemos que ter na boca as palavras para poder se defender é vital quando te fodem. As pinturas também estão lá para isso. Outro exemplo interessante é o Clube Oruro na cidade de Oruro, clube que condensa as normas sociais classistas e racistas a respeito da sociedade orurenha em seus afãs hipócritas: bom, ali pintamos: “Tu me quer virgem, tu me quer santa, você me tem farta”. Em Cochabamba temos observado como o atual prefeito que usa como apelido político “el Bombóm”, havia tentado conquistar apoio do setor feminino, apoio construído misturando confusos sentimentos de participação e machismo ao mesmo tempo. Bom, para elas escrevemos em todas as partes e repetidamente: “Mulher, não se entregue ao “facho” fascista de Bombóm, constrói sua própria visão”.
Temos tido cuidado também de não cair em uma visão maniqueísta onde os homens enquanto homens são os vilões do filme e as mulheres enquanto mulheres somos as boazinhas do assunto. Assim fizemos alguns escritos alusivos a aquelas mulheres que se identificam com o sistema e que adotam seus métodos machistas e hipócritas, pintando: “Cuidado, o patriarcado agora também se disfarça de mulher sedenta de poder”.
Sabem, essa pintura ocasionou o VII Encontro Feminista Latino-americano no Chile, uma reação de tal apaziguamento por parte das mulheres, que o encontro inteiro não pôde seguir adiante sem antes tomar posição ante a pintura e por tabela ante o poder e seus representantes. Outro escrito dedicado a algumas candidatas que utilizam o mesmo formato do homem público na hora de fazer política e se mostram como supermulheres “decentes” pintamos: “Eu era uma mulher decente e dona de casa, que barbaridade não estranho meu passado, note que não vou sair candidata”.
            Esses são só alguns exemplos para aclarar como interatuamos com o espaço físico e com o espaço histórico de nossa cotidianidade. O resultado disso é a pintura que dialoga da parede sempre com um “tu” que a olha. Nossas pinturas se dirigem a um “tu” e, sobretudo a um tu despojado de classe, de pertencimento institucional, despojado de hierarquia, despojado de mando. Por isso jamais insultamos, não lançamos declarações, não divulgamos receitas políticas, não somos complacentes. É por isso que as tentativas de nos copiar, que não foram poucas, não obtiveram nenhum resultado.
            Graffitar assim é uma coisa muito séria. É uma ação onde inserimos nosso corpo na luta histórica para transformar nossa sociedade. Não colocamos um corpo heroico, militarizado, colocamos um corpo vulnerável, sensível, sensual, criativo, desarmado e não-violento.




Coletivo Mujeres Creando é formado por ativistas urbanas, feministas e anarquistas, com bases nas cidades de La Paz e Santa Cruz de la Sierra, Bolívia. Fundado em 1992, Mujeres Creando é um movimento autônomo (constituído por prostitutas, poetas, jornalistas, vendedoras de mercado, empregadas domésticas, artistas, costureiras, professoras etc.) em luta contra o sexismo e o patriarcado institucionalizado, tanto na Bolívia quanto no resto do mundo. Com essa finalidade, as integrantes de Mujeres Creando atuam como guerrilheiras, abrindo espaços de visibilidade e descobrindo outros com seus próprios corpos; na rua, nos meios de comunicação e nos espaços da arte contemporânea internacional.




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