O dia de São Marçal é quando os bumba-bois de sotaque de matraca caminham a avenida João Paulo até a imagem do santo que fica ali esperando o ano todo. Nesse momento, muita gente paga as promessas, e se emociona.
Mas vamos voltar um pouco a fita, que a romaria começa muito antes.
Eu mais o caboclo de pena de Madre Deus |
Uma hora, com um olho aberto outro fechado fui sacudida por uma gritaria: “Motorista! Abre a porta que vai desovar um cadáver!” A treta bêbada continuou mais uns vinte minutos, até o camarada fazer brilhar na noite uma faca e encostar no bucho do condenado. “Rapaz, que eu te furo aqui mesmo!”. Pausa, pra respirar. Mano, eu fiquei indignada. Além de tudo, de toda situação que eu já ficava cabrêra de raiva no Maranhão por ver tanta macheza besta, o rapaz queria rasgar as tripas do outro com uma faca de passar manteiga no pão! Eu já ouvi falar de peixêra, navalha, faca de açougueiro... mas faca de pão é mancada. Deve doer pra burro.
Enfim, a treta foi separada a tempo, e continuamos. O Puca, que tava coordenando as paradas, estava desde o início falando que a gente ia amanhecer num lugar bonito demais, na beira da água. O sol já estava querendo raiar, e chegamos em um bairro afastado de São Luis, o Quebra Pote, moradia de muita gente do grupo. Lá o arraiá estava vazio, só alguns moradores madrugueiros nas portas de casa. Um deles me chamou e me deu uma xícara de café quentinha, que foi o fôlego pra tirar o tênis e cair na água. Muita gente tirou as roupas de vaqueiro e deixou os pandeirões ali mesmo. O sol subia de dentro do mar, e dava pra ver os guarás voando vermelhos.
“Ele voa de banda, meu guará”
Ali, entendi no meu entendimento vivido porque se dança bumba-boi. Não tinha quase ninguém assistindo, três ou quatro pessoas. Mas o boi rodopiava brilhando, o batalhão continuava pesado e o cantor ainda era um canarinho. Parou a treta, o giro confuso das vozes, a gritaria. A festa era de intimidade com o lugar e conosco, as letras encontraram seu cenário, e era tão bonito que eu vou ficar quieta aqui. Pronto.
O provedor do arraiá de Quebra Pote, nos ofereceu uma comida muito boa, peixe-arraia ensopado com feijão preto e farinha d´agua. As índias reclamavam da batata da perna, que estava queimando. A minha estava também, e resolvi dormir de vez até chegar na Avenida João Paulo.
Lá, desembarcamos eram umas nove e meia da manhã. Já estávamos junto com Madre Deus fazia mais de 12 horas. O sol começava a pegar pesado, e qualquer sombrinha era moradia dos caboclos de pena com seus trezentos quilos de roupas. No boi de Madre Deus, existem muitos caboclos ainda crianças, que dançam pra porra. Eu fiquei impressionada com a resistência deles, e mais ainda com a beleza dos passos que vi ali. Alguns caboclos carregam pesados anéis, e colares e guias. O sol de rachar a cuca fazia cambalear, mas todo mundo seguia firme e forte do jeito que dava. O trajeto inteiro deve ter uns 300 metros, que foram percorridos das nove e meia até umas seis e meia da tarde! Passaram dezenas de grupos ali, e o mais importante é chegar até São Marçal firme e fazer a reverência cantando três toadas com toda força reunida na semana inteira. Passamos por um calor infernal e duas chuvas torrenciais de alagar a rua, as penas das índias viraram fiozinhos e os pandeirões de couro tiveram que descansar. Continuaram só os sintéticos, industriais.
Quando chegamos na frente do santo, as toadas tremeram o chão. As lágrimas do povo corriam misturando com a chuva e Madre Deus fez cicatriz no meu coração: até hoje coça.
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Um comentário:
ái que eu me morro. quebra´pote, madre-deus...
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